Para que serve a inovação financeira?

Para falar sobre inovação financeira, o que significa e para que serve, convém ter uma visão mais alargada sobre economia e especialmente sobre os Estados Unidos. Os bancos criam novos produtos financeiros para vender a investidores. Esses produtos permitem financiar ou empresas ou obras públicas ou ainda os próprios consumidores. Isto é básico.
Vamos começar do lado da procura de capital. Aquilo que faz funcionar a banca de investimento, entre outras coisas, é fazer de intermediário entre a oferta e a procura de capital, quando se trata de montantes muito elevados. Os Estados Unidos têm captado capital estrangeiro em grande escala, durante as últimas duas décadas. Os produtos financeiros servem para dar aos investidores um bom rendimento para aplicarem o seu capital para certos fins. Muitos produtos financeiros serviram para canalizar poupanças da China (que tem excedentes de dólares) e também de investidores europeus.
Isto permite que as poupanças de países tais como a China sirvam para financiar o consumo e o investimento nos Estados Unidos. Trata-se de um facto, de uma realidade económica.
Mas em termos mais humanos, a verdade é que não há nada melhor do que ser cidadão dos Estados Unidos da América e pertencer à classe média ou média-alta. Um cidadão americano com algum rendimento tem à sua disposição as melhores universidades, a melhor infra-estrututra – sem exagero podemos dizer que tem o melhor do mundo à sua disposição.
Para pegar no exemplo da infra-estrutura, um estudo recente da Mercer apresenta uma classificação de cidades mundiais que mostra claramente que as cidades americanas têm boa infra-estrutura. Na Europa, só mesmo na Austria, Suiça e Alemanha é que a infra-estrutura está à altura daquilo que se faz do outro lado do Atlântico. Claro que também há cidades com má qualidade de vida e bairros maus nos Estados Unidos.
Quanto ao ensino superior, a percentagem de americanos entre os 25 e 34 anos com cursos universitários era de 39% em 2006 (fonte OCDE). Na Europa, o número só é mais alto na Irlanda, Bélgica, Noruega, França e Dinamarca. Resta que uma grande camada da população jovem nos Estados Unidos tem um curso superior.
Uma caracteristica essencial dos governantes em Washington é que têm sempre planos muito ambiciosos para a população. Durante os últimos anos em Washington, foram aprovadas uma série de leis que permitiram e de facto encorajaram que uma grande camada da população tivesse a capacidade de comprar casa. Não estou a dizer que tenha havido um plano explícito para alargar a propriedade a toda a população. Mas de facto as leis e o enquadramento legal permitiram que tal acontecesse. Foi o suficiente para provocar uma profunda crise de crédito que depois se alargou a outros sectores do sistema financeiro.
Para que tal acontecesse, foi preciso que os bancos de investimento convencessem os investidores que as hipotecas concedidas a famílias americanas de rendimentos baixos, sendo muito arriscadas individualmente, não ofereciam um grande risco quando agrupadas e adquiridas em grande quantidade. Foi neste contexto que surgiram as inovações financeiras de 2003-2008: “Collateralized Debt Obligations” (CDOs) e outros tipos de “Asset Backed Securities” (ABS) são alguns exemplos. Todos eles seguiam uma lógica simples: enquanto que comprar um empréstimo individual pode ser arriscado, comprar uma quantidade de empréstimos não o será, porque a rentabilidade superior oferecida compensa o risco. Dito de outra maneira, comprar grupos de empréstimos seria menos arriscado e iria oferecer uma margem de segurança.
Aquilo que esta crise tem em comum com a crise dos “junk bonds” dos anos 80 é que ambas partiram dos mesmos princípios:
  1. É atraente para o investidor conceder crédito a empresas (junk bonds) ou indivíduos (ABS) nos Estados Unidos que normalmente não teriam acesso a crédito
  2. A rentabilidade oferecida por grupos de créditos é superior e isso compensa o risco

E mais – podemos ainda fazer um paralelo com a crise do dot com em 1999-2000. De facto, a bolha da tecnologia surgiu depois da administração Clinton, durante os anos 90 ter martelado o mundo acerca da excelência da tecnologia americana. Mais uma vez, milhares de jovens empresários do sector da tecnologia que normalmente nunca teriam sido financiados, tiveram acesso a fundos desta vez sob forma de capitais próprios. Mais uma vez, o sistema financeiro funcionou como uma máquina global que transferiu fundos para financiar empresa americanas que supostamente iriam oferecer crescimentos elevados. Os Estados Unidos são o único país onde um jovem empresário pode arriscar, perder tudo e voltar a lançar uma empresa. Ainda bem para eles, mas para os investidores estrangeiros isso significa muitas vezes financiar tentativas falhadas.

De certa forma, estamos todos a financiar o sonho americano.
Mas há um senão. Quando as empresas ou o consumidor americano deixam de ser capazes de pagar ou quando não oferecem o retorno que anunciaram, o mundo entra em crise financeira. Mas cuidado, nem tudo se perde. As casas que foram construídas nos Estados Unidos continuam lá, testemunho dos excessos que levaram à última crise. Quanto à bolha dot com, a fibra óptica que atravessa o oceano Atlântico e que faz com que uma chamada Londres-Nova Iorque seja mais barata que uma Londres-Lisboa também está no mesmo lugar. E algumas das empresas financiadas por junk bonds cresceram e vingaram. Nascer e crescer nos Estados Unidos continua a ser do melhor que há.
Os bancos de investimento contribuíram assim, ainda que indirectamente, para criar este estado de coisas. Cada vez que um banco de investimento organizou uma transferência de capital para os Estados Unidos, ganhou comissões sobre a operação. Como sabem, tanto Wall Street como a City são habitados por mercenários. Dentro dos bancos de investimento, há um jogo que corre há anos, como é descrito por Alice Schroeder na sua biografia de Warren Buffett. Chama-se “bonus pimping” ou seja a chulice do prémio anual e consiste em, todos os anos por volta de Dezembro, fazer a defesa do seu trabalho junto das chefias para obter o máximo do prémio de produtividade no final do ano. Estamos pois a passar do financiamento da economia americana para uma comissão de um banco de investimento para o prémio de produtividade de um indivíduo. Todos os grandes bancos de investimento têm este esquema de funcionamento. Também o Lehman Brothers e o Bear Stearns o tinham. Neste jogo, não há santos nem pecadores. Há recompensas para quem melhor conseguir organizar a transferência de capital de uma parte do mundo para outra.
Resta saber se os produtos inovadores vão resistir a esta crise. Alguns sim, outros não. Mas seguramente surgirão outros. Não é nem bom, nem mau. Serviram um propósito. Alguns continuarão a servir. Por exemplo, o mercado LBO (Leveraged Buy-Out) parece-me ter esmorecido mas não vai desaparecer. Enquanto que antes da crise alguns fundos de LBO tinham ambições de se tornar bancos, essas ambições foram rapidamente cortadas pela raiz. Mas o modelo parece destinado a sobreviver.
O próximo objectivo da administração Obama, o seu principal objectivo, já não é a recuperação do sistema financeiro, que é dada como assegurada. Aquilo que se discute todos os dias é que cada americano tem direito à saúde e que actualmente 40 milhões de americanos não estão abrangidos. Washington continua assim a grande tradição de alargar as fronteiras de aquilo que são os direitos e as oportunidades do povo americano.
Neste momento em Wall Street, já haverá gente com boas ligações políticas a tentar entender como mobilizar investidores estrangeiros para participarem no próximo passo da construção do sonho americano. Penso que rápidamente haverá novos produtos financeiros destinados a financiar o alargamento da cobertura de saúde a todos os Americanos.
Já repararam como seria se fosse assim na Europa? Que tal se começássemos a mobilizar investimento para melhorar o nosso sistema de saúde. Alguém sabe quantos europeus não têm direito a um cuidados de saúde decentes? Penso que nunca ninguém terá estimado, pelo menos nunca li nada nesse sentido.
Fazendo agora um paralelo com as bolhas anteriores, também temos aqui gente que sabe umas coisas sobre tecnologia. E a nossa infra-estrutura? Há muitas empresas de média dimensão que ficariam a lucrar com um mercado de obrigações high-yield europeu mas – surpresa, esse mercado nunca se desenvolveu na Europa.
Há muito por fazer… Com excepção dos países mais desenvolvidos que são capazes de mobilizar capital de outros cantos do mundo quando se torna necessário financiar grandes projectos de melhoria da vida das populações, na Europa do Sul não parece ser essa a principal preocupação de quem está no poder.
Um dos principais bloqueios ao investimento estrangeiro em Portugal tem a ver com a política de promoção do investimento. Enquanto que em países tais como o Brasil, que apresentam elevadas taxas de crescimento económico, a maior parte das operações são “green field” ou seja investimentos em novas fábricas e que começam do zero, em países mais desenvolvidos, estima-se que dois terços dos investimentos são dirigidos para a compra de empresas.
Em Portugal, a promoção do investimento continua a significar a promoção de projectos “green field” o que é um esforço em vão. Quanto ao investimento dito secundário ou seja a compra de empresas portuguesas por estrangeiros, o Governo parece apostado em desencorajar qualquer operação que signifique uma transferência dos chamados “centros de decisão” para fora do território nacional. Esta política provinciana significa que o país está cada vez mais isolado e que os empresários portugueses têm cada vez mais dificuldade em financiar-se por aumento de capitais próprios.

2 thoughts on “Para que serve a inovação financeira?

  1. Os EUA têm a melhor infra-estrutura? Ó Zé Teles, vai dar banho ao cão.A Europa deveria preocupar-se em melhorar o sistema de saúde? Idem.

  2. Jose Teles says:

    Caro João muito obrigado pelo comentário. De facto sempre fiquei bastante impressionado com a qualidade da infra-estrutura nos Estados Unidos… Talvez me engane. Um exemplo:Extensão do metropolitano:Nova Iorque: 390kmShanghai: 148kmCidade do Mexico: 200kmBerlim: 144kmQuanto ao sistema de saúde na Europa, reconheço que há cobertura quase universal o que é certamente positivo mas a qualidade deixa muito a desejar, já para não falar no buraco financeiro que representa.

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